terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

GLORINHA, DEZ ANOS DEPOIS...

O Walmor, à época traído por um novo amor e com a cabeça zoando de tantas caipirinhas, lembrou-se convenientemente de uma bela historia. Diz o contador, passou-se em Porto Alegre em 78, lá pelos lados do Bonfim, um tradicional bairro judaico daquela cidade. Vamos a ela…
Valdir estava lá no altar da Igreja Santa Teresinha, vestido a rigor, esperando por ela. Noivas, sabia, demoram um monte de tempo a chegar e ele tinha a certeza de que Rachel mais ainda demoraria, pois era vaidosa em excesso e só sairia de casa se estivesse perfeita e irretocável. A noiva, além disso, era mimada demais e tendo nascido em berço esplêndido, era a herdeira sozinha de todo o patrimônio da sua família. Estava tendo ainda a virtude insensata de casar por amor e não, como a maioria destas herdeiras que por aí andam, que só unem os interesses. E mais ainda, traria dali a pouco para celebrar o casório um convidado muito especial alojado em seu ventre. Até, talvez por isto, diziam alguns, que a data foi meio que marcada às pressas porque a família da moça, religiosa em excesso, queria evitar comentários maldosos.
O noivo, como remédio calmante, passeava o olhar nos convivas e se sentia o mais admirado de todos, se bem que via que muitos olhos o viam como se fosse o esperto da hora. E não se tira a razão destes alguns, pois a respeito do rapaz só se sabia que era interiorano e muito trabalhador, aliás, isto já o tinha provado em sua promissora carreira na empresa do sogro.
Mas voltemos ao olhar do noivo sobre os presentes nos bancos da igreja. Pois lá jogava ele seus olhos de um lado para o outro como se fosse um radar. Assim, ora pousava sua atenção em um, ora pousava em outro e sempre distribuindo sorrisos. Até que neste passeio ocular seu radar soa em alerta vermelho.
No terceiro banco, bem no passeio do corredor, singela e quietinha, pairava Glorinha a olhar para o noivo com um ponto de interrogação em um olho e um de exclamação no outro, o que tornava difícil compreender a leitura do queria expressar. Soube-se depois que um queria dizer que aquela cerimônia era imoral e o outro estabelecia que além de imoral, era ilegal.
De fato, e com razão, Valdir era casado com aquela Glorinha ali de corpo presente há mais ou menos uma dezena de anos e comprovava-se o feito em cartório com direito a festa no salão da igreja de uma cidade do interior.
Já fazia uns dois anos e meio que Valdir, depois de formado, conseguira um emprego na capital, na tal empresa do sogro e onde teve ascensão acelerada pelo namoro com a Rachel. Glorinha ficara no interior com os dois bebês gêmeos a esperar que o marido juntasse condições para a mudança, aliás, a qual foi sempre procrastinada. Pra compensar, Valdir visitava a família dois fins de semana por mês e, verdade seja dita, jamais deixou que faltassem quaisquer coisas em casa, a não ser, é claro, a sua presença constante. Mas, mesmo assim, luxos não havia e Glorinha morava em casa alugada, o que tipicamente nos diz que a mulher não tinha nada de bens materiais. E, a essas alturas da história, como bem podem ver, já é condenável a atitude deste sujeito chamado Valdir. Convenhamos, desconsiderando o romantismo que possa haver neste caso, que um cara que banca o solteiro pra casar com mulher rica, tem mais é que ser desmascarado, não acha?
Mas deixemos de ponderar e voltemos à cerimônia presente que, por agora, é o prato principal do cardápio.
Pois bem, lá estava um medroso Valdir com o coração descompassado e com o raciocínio desconsertado, coisas naturais presentes em um homem quando pressente que a mulher vai fazer uma loucura sem precedentes. E ele estava refém das circunstâncias, nada podia fazer a não ser esperar o pior, talvez um escândalo que arrepiasse até a santa do altar.
No entanto, Glorinha, após um primeiro instante de hesitação, permaneceu impávida e fria, podia-se dizer até mesmo completamente insensível como se estivesse tomando um prato de sopa na cozinha de casa. Para o desespero do camarada, tirou ela de sua bolsinha de lantejoula, surpreendentemente, um branco lencinho, acenando-o para o Valdir.
O tipo de reação encontrada em Glorinha, dizem os estudiosos, provam o quanto são as mulheres cruéis com os homens. Estratégias assim diabólicas são exclusivamente femininas e tem a capacidade de liquidar com um homem em segundos. E Valdir estava certamente morto e não sabia.
Os capuchinhos tocam a Marcha Nupcial e Rachel, com seu esplendor e uma cauda de cinco metros, invade o templo. Seu sorriso brilhante traduz a esperança de um casamento feliz e duradouro. Que somente a morte os separe…
Antes que o padre permitisse o beijo, Glorinha, mansamente, sai da igreja pela porta da frente. Como boa católica, se vira e faz o sinal da cruz em respeito.
Hoje, passado alguns anos do fato, ninguém mais reconhece aquela Glorinha que vivia entre o tanque e o fogão, lavando fraldas e fazendo papinhas. Glorinha atualmente mora numa cobertura da Nilo Peçanha e tem motorista particular. Vai pra Europa anualmente levar as crianças a esquiar e vestidos só compra em Milão. Glorinha está renovada dez anos graças ao Pitangui.
Optou ela pelo sagrado silêncio dos inocentes, uma falsidade peculiar e interessante inventada certamente por uma mulher. Preferiu ela, em jogada de gênio, em ser a amante daquele Valdir esperto e endinheirado. Mas que fique bem claro, para o final desta história, que ela só recebe o amante com hora marcada e a seu critério o lugar. Não é sempre, esclareça-se, que ela tem tempo para atendê-lo.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

ADÔNIS E A FEIA...

Esta história dramática, e talvez inveridíca, foi narrada de um jeito sério pelo Guimarães, um psiquiatra aposentado que ocasionalmente aparecia no nostálgico Bar Pampulhinha, que ficava ali na República com a João Pessoa. Então, aí está transcrita tal qual foi contada.
Coitada, era feia demais. E ainda gordinha e de óculos de garrafão A sociedade, infelizmente, discrimina estes fatos. E as pessoas não privilegiadas com o belo, todos sabem, sofrem com isto. Algumas pessoas, com o tempo conseguem burlar a feiura e melhoram a imagem, seja com artifícios ou com o bisturi. Ela não, pois condição não tinha pra estas finesses.
Desde pequena pagava tributos à sua aparência. Desde apelidos que a rebaixavam ao segundo time de gente, até as piores piadas dos colegas sem classe da classe. Pior é que havia momentos em que até as professoras tinham que rir da coitada, tamanho a variedade de cacoetes que tinha.
Cresceu assim em meio aos bullyings e aos recalques, sem jamais revidar, sem jamais responder. Suportava calada. Mas ela sabe o quanto insistiu, ela recorda o quanto tentava, sem se fazer notar, entrar nas brincadeiras de grupo. Ela tem na memória como foi excluída de tudo. Pra se infiltrar, aliás, como é habito entre as feias e as gordinhas, tinha que tentar ser amiga da mais bonitinha da turma e assim pegar carona na sua beleza. Era o jeito de, pelo menos, estar conectada com o mundo, mas era assim como agora, sua conexão caía a todo o momento.
Assim foi também no ensino médio no Julinho e assim foi igualmente na PUC. Nestas alturas da vida nem insistia, nem tentava. Isolou-se…
Restava-lhe a silenciosa inveja de ver casais namorando.
Formou-se em contábeis e montou um pequeno escritório na Lima e Silva, uma ruazinha bucólica em Porto Alegre. Trabalhava muito, mas sozinha por preferência e sozinha também morava. De mãe falecida, seu pai vivia mais pro interior do Estado.
Era uma avessa, sem amizades e sem relacionamentos, principalmente no amor. Nunca conhecera um homem entre quatro paredes. Quer dizer, até aqueles dias…
Ocorria a inauguração de uma loja de confecções perto de seu escritório, bem no trajeto que fazia, quando voltava pra casa. Havia uma festa e um desfile de modas e as pessoas festejavam alegremente o evento.
Ela, evidentemente, não entrou. Permaneceu na calçada, mas esgueirou-se pela frente da vitrina até arranjar um cantinho que tivesse visão. E aí em um flash de segundos tudo mudou na sua vida.
Ela sentiu o olhar dele fixo no seu, tão fixo e tão direto que ela arrepiou até os fios da sua intimidade intocada. Ficou arrebatada. De dentro da loja ele lhe descobriu fora. Um rosto de macho angelical, um verdadeiro Deus do Olimpo adornado pelos olhos verdes mais lindos que ela já vira. Cabelos revoltos e negros. Ele ali, não era um sonho, parecendo dizer: vem, vem…
Mas ela só consegue dizer, através do vidro, gesticulando com a mão, que depois ela volta. Sai ela correndo pela calçada com rumo à sua casa.
Atira-se no sofá e, incrédula, começa a pensar sobre o encanto daquele momento.
Depois do devaneio, chega a conclusão que precisava finalmente romper com aquele passado. Precisava enfrentar de uma vez por todas o que a vida lhe oferecia. Talvez fosse a última oportunidade
Na manhã seguinte não vai trabalhar. Muito há por fazer e sente que o resto de sua vida será decidido. Sem hesitar, compra um vestido de noiva, mais grinalda e um buquê de flores de campo.
Aí, no supremo sacrifício à timidez, lá está ela no interior da loja em que os olhares aconteceram. Nada se sabe, até agora, das conversas que ela lá teve.
Mas o que se sabe sim, com certeza, é que naquela noite ela estava vestida de noiva de véu e grinalda na cama. Linda, doce e lasciva. Com ela estava Adônis, o deus grego da vitrina.   Vestidos a rigor no principio e depois como a natureza lhes pusera no mundo.
Foi uma noite inesquecível de amor. Ele, lânguido, mostrou-se completamente submisso às suas vontades e aceitava todos os amores que ela, enlouquecida, lhe oferecia.
E assim se passaram os dias. E ela, desde o primeiro, não fora mais trabalhar em nenhum outro dia. Ficara fechada em casa com o amante numa lua de mel sem fim. Literalmente louca de amor, exauriu-se ao extremo e morrera fazendo amor. Entregara toda a sua vida ao desejo reprimido em seu coração e num último orgasmo dera o suspiro final.
Na loja onde ela estivera, o dono surpreende-se quando a gerente lhe conta uma novidade. Uma cliente gordinha, muito estranha, comprara por um dinheiro acima da conta, com roupa e tudo, um dos manequins masculinos que enfeitavam a vitrina…
Felizes são os insanos que acreditam no amor.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

A MOCINHA DO BRADESCO

Lá pela década de 70, entregar declaração de Imposto de Renda pela Internet era coisa inimaginável para o povo brasileiro. Então o negócio era fazer a mão e enfrentar enormes filas para entregar a bendita ao banco de preferência. O Bradesco, à época, então bolou uma jogada de marketing para facilitar e atrair estas declarações. Apareceram ao país as famosas Moças do Bradesco, simpáticas, lindas e joviais, as quais com suas saias vermelhas e camisetas brancas faziam o pré-atendimento na entrada das agências. O slogan “’é só falar com a moça” caiu no gosto da brasileirada e logo e as moças passaram a ser chamadas carinhosamente de mocinhas.
E uma destas mocinhas, uma linda lourinha com carinha de inocente, é o pivô desta história contada justamente pelo outro protagonista da mesma, o Seu Dutra.
O Seu Dutra, a saber, era um viúvo de perto de 60 anos, bem remunerado e aposentado da Viação Férrea. Ele, como principal característica, era um inveterado apreciador de mocinhas e por elas fazia qualquer sacrifício, até se apaixonar se necessário fosse. Dizia aos amigos, para justificar a condição, que por muitos anos aturou sua megera parceira e que, agora livre, queria mais era beber da fonte da juventude, somente encontrada, segundo ele, mais precisamente na companhia de doces Lolitas. Sua filosofia contrariava a do carcará e, ao invés do “pega, mata e come”, Seu Dutra gostava de primeiro assar em fogo lento e depois, sim,  saborear o galeto.
Por coincidência, Seu Dutra era cliente do Bradesco e foi um dos primeiros a aprovar a estratégia do banco. E lá, na agência da Rua Vigário José Inácio em Porto Alegre, foi o Seu Dutra, certa vez, fazer um depósito e pagar umas contas. Quis o destino que o nosso herói fosse abordado pela tal lourinha com carinha de inocência. Aquele sorriso de covinhas enfeitado por verdes olhos deixou o Seu Dutra completamente arrebatado, hipnotizado, petrificado e muitos outros “ados”.
Desde aquele singelo momento não havia mais dia em que não houvesse uma visita ao banco daquele cliente fiel. Obstinado, Seu Dutra, mesmo enfrentando grandes dificuldades devido à timidez da menina, tentava burlar os sinais que estavam fechados e levou quase um mês para, pelo menos, pagar-lhe um lanchinho no bar da esquina, o que foi um avanço considerado. Mas, enfim, ganhou-lhe a confiança, assim como também, na repetição dos lanchinhos, passou a ser seu confidente e conselheiro, aliás, o que era muito oportuno para ingressar na intimidade daquela Lolita.
Não demorou muito tempo para que, sem terceiras intenções, o Seu Dutra começasse a lhe dar pequenos mimos e presentinhos, os quais deixavam a garota sempre na expectativa de ser surpreendida. Os presentinhos, paulatinamente calculados, começaram a aumentar de valor e assim a mocinha, em certo momento, já ganhava pulseirinhas de ouro e pingentes de anjinhos. E os lanchinhos passaram a virar jantares nos restaurantes da zona sul. As prestações dos crediários das lojas que ela fazia, Seu Dutra, um bom samaritano, pagava todinhas.
Passaram-se, neste, digamos investimento, quase seis meses de tempo. Seu Dutra estava embriagadamente apaixonado pela mocinha. Enquanto isto, ela, nas horas de folga, estava aprendendo a dirigir, pois o Seu Dutra não queria que ela pegasse mais ônibus e, junto com ela, já tinha ido até ver um Fiat 147 que era a novidade da época.
Foi, provavelmente, a expectativa de ser dona de um carro zerinho que fez aquela mocinha do banco abrir sua guarda para atender os anseios cada vez mais insistentes do generoso senhor. Assim, depois de uns comes e bebes à noite num bar da Assunção, lá perto do antigo cais das barcas, a menina, de propósito para criar coragem, bebeu além da conta e, tontinha, aceitou ir finalmente a um motel com o Seu Dutra. Com o dedinho no canto da boca, disse sim timidamente.
E então, para um delirante assistente, lá estava a gazela ao lado da caminha redonda, desfraldando sobre a cabeça a branca blusinha do banco como se essa fosse a bandeira da rendição. Quando o sutiã caiu no carpete, aqueles rígidos seios desnudos ficaram a mercê das garras do velho lobo. Daí para diante foi um tapa, pois o Seu Dutra, tomando as rédeas do páreo injusto, fez com que a menina, mesmo contra a sua vontade, ficasse nuazinha da silva.
Devagar, como diz a bula dos conquistadores venezianos, em não menos que meia hora, Seu Dutra já havia beijado a mocinha em quase todo o seu corpo, menos onde morava sua maior intimidade, pois para aquele sagrado lugar encantado reservava seu golpe de mestre. Queria que, chegando ali em “gran finale”, a menina, extenuada, espontaneamente se deixasse ser possuída.
Porém, como comprova a história, nem tudo tinha tido uma grande final na década de 70. Para constar, enquanto o Seu Dutra continua a beijá-la, o Elvis morrera e os Beatles se acabaram, isso sem contar que o Geisel e o Figueiredo governaram o Brasil. Mas o velho guerreiro não estava nem aí para a história e queria mais era que aquela conquista passasse a fazer parte das suas historinhas particulares.
E então, com a pequena caça praticamente agonizante, o lobo desliza a boca sobre o seu tanquinho com destino geométrico àquele triangulo. Tal qual num termômetro perto da brasa, a temperatura da moça sobe e chega a um limite simplesmente insuportável para a sua libido. E então, num flash de segundos acontece o inesperado e fora das previsões do Seu Dutra.  A gazela se transforma numa serpente feroz  e, abandonando as defesas, parte para um ataque mortal sobre a presa. A mocinha, com atitudes de uma vadia exorcizada, vira violentamente o corpo do sujeito de barriga pra cima e se lança sobre a vítima num bote fatal, cravando os seus dentes sem dó nem piedade no pescoço do pobre do Dutra. E ainda, para desespero do galante assustado, ela vocifera vulgares palavras só proferidas por mulheres de zona. E, como cartada final, ordena que ele a possua de forma selvagem até de manhã.
Ora, senhoras e senhores, não há homem na face da terra que não se apavore com esta expectativa. Para o nosso herói, então, nem se fala. Se antes se inesperava o fato, o que acontece com o Seu Dutra, diante da reação da mocinha, já era previsto. O cérebro não mais obedeceu a sua vontade e o sangue retirou-se da sua nervura. Não havia mais nada no mundo, naquele momento, que fizesse com que a flacidez do Seu Dutra se recompusesse. Sob os olhos do homem, aquilo que ele tanto precisava no ato, parecia desaparecer do meio de suas pernas. Simplesmente, um cruel pesadelo. Nervoso pela ausência do elemento essencial para um macho, Seu Dutra ainda se sacrificou mais uma hora em tentativas inúteis.
Antes da meia noite terminava o jogo sem direito à prorrogação, pois Seu Dutra, acabado e envergonhado, queria era mais sair de campo e evaporar deste mundo.
Disse-me pessoalmente o Seu Dutra que jamais pisara novamente no banco e até por lá encerrara suas contas. A mocinha, conforme informações da contraespionagem, até hoje se arrepende de ter se revelado antes da hora. Pagando tributo ao erro infantil de vigarista ocasional e, sem o carrinho zero quilometro, ela continuou a pegar o “buzão” pra ir da Azenha trabalhar no seu banco.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

ALL YOU NEED IS LOVE...

Porto Alegre, 1980, últimas horas do ano.  Eugênio, sozinho e perdido, estava sentado e algemado num banco de um corredor, esperando o advogado chegar. Lá fora começavam a espocar os primeiros foguetes do réveillon e ali dentro as poucas pessoas se davam um abraço que outro com os desejos de um ano novo feliz. Para ele, tanto o ano como a vida tinham acabado. Eugênio estava desatinado e sem referências, pois não era um marginal e tampouco um bandido.  Sempre fora um rapaz comportado e de educação refinada, tendo casado com a namorada primeira e não conhecido as malandragens da vida. De mulher, principalmente, só conhecia a sua. Tinha sido o tal tipo, como tantos milhões parecidos, que só fazia o trajeto casa e trabalho e não se desviava, nem moral e nem geograficamente, deste percurso.
Dez anos antes em 70, enquanto o mundo estava virando do avesso e a selva do Vietnã enterrava soldados, Soninha, a tal namorada primeira, era órfã e morava com a tia num pequeno apartamento na Cristovão Colombo, perto da Brahma.
Ela tinha casado com mais experiência, fruto de sua convivência com os hippies e a teoria em que tudo era possível desde que feito com amor. Dentro disto, com a paz, amor e um fininho de erva, ela amadureceu precocemente e até mesmo já havia tido um caso de amor não resolvido com um sujeito bem mais velho que ela. Ele, ao contrário, só vivendo para o estudo, só sabia da vida o que estava escrito nos livros. Vivia somente com o pai, pois a mãe tinha morrido já fazia alguns anos. 
Em frente à Reitoria, lá na Faculdade de Filosofia, “embalada” com Dexamil, Soninha cantarolava “All You Need is Love” e o Eugênio, que fazia Farmácia, nem tinha ideia do que os Beatles diziam. Só achava aquela garota de riponga floreada muito engraçada. E eles, com ele meio sem graça e entre as muitas graças dela, foram se grudando, assim como o pão com a manteiga.
Eugênio, com a evolução da amizade, levou a espevitada Soninha para o pai conhecer. O pai, quase um cinquentão, a aguardava ansioso para um julgamento, mas logo de entrada a descontraída menina quebrou todo o gelo.  Naquele sisudo casarão da Independência, a alegria tinha acabado de invadir as alas e o pai do Eugênio encantou-se por ela e nunca mais, os dois, lhe deixaram sair. Ela mandou que abrissem as janelas e que deixassem as cortinas esvoaçarem as naftalinas com o vento. Assim, como a natureza que ali aflorava, virou a filha do velho, virou a irmã e mulher do Eugênio, virou, enfim, a luz que faltava.
Mesmo com a barriga de sete meses, Soninha, entusiasmada, empunhava cartazes contra a repressão e até mesmo se encarapitava nas árvores da Praça da Alfandega quando o Choque chegava. E o Eugênio, fiel ao seu lado, na Praça da Alfândega, exigia que os milicos entregassem o poder.
Veio antes a filha e depois o menino. E o relógio dos anos foi girando e girando. Na Redenção, Eugênio e Soninha, nos domingos de primavera, passeavam de bicicletas com os filhos. No verão em Cidreira, na casinha de praia, toda a família era só alegria.
Eugênio, se é que tinha noção, jamais pensara em ser tão feliz desse jeito. Nunca imaginara a expansão da família e nem sequer tinha tido o maravilhoso sonho de ser pai e marido. E, no entanto, se é que existia a perfeição nesta vida, Eugênio a tinha inteiramente obtido. E, às vezes, tinha até certo medo, pois, como qualquer ser humano, sabia que tudo, seja concreto ou abstrato, em algum momento pela lei do destino, tem que acabar.
E acabou naquela tarde em que a década estava virando.
O pessoal que trabalhava na farmácia foi liberado bem mais cedo do que o previsto e o exultante Eugênio logo correu para casa para antecipar os festejos. Entra correndo e chamando a Soninha, mas ela, naquele momento se contorcendo entre gemidos, não lhe escuta, pois o seu ouvido só consegue entender os murmúrios de amor ditos pelo pai do rapaz. E assim, Eugênio, na intimidade daquela nudez imoral, os encontra no quarto.
Os olhos esbugalhados de Eugenio percorreram o quarto e acharam a tesoura na penteadeira. Com ela, com a visão deturpada, desfere muitas e muitas estocadas no pai e só pára quando cai exaurido sobre o assoalho. Soninha, desesperada, pede perdão, diz que merece morrer e lhe suplica que a mate. Eugênio, num choro convulsivo, diz que infelizmente ela deve viver, pois os filhos dela dependerão. E amargamente complementa:
- E eu já nem sei se são meus…
Completamente arrasado, ele exige as verdades e ela, sem mais nada a perder, e até por piedade, lhe conta que o pai dele era o caso mal resolvido de amor que ela teve. E mais, que durante os dez anos vivera com o pai durante o dia e com ele, o Eugênio, durante a noite. E termina afirmando, com todas as letras e lágrimas, que amava profundamente os dois e que somente a eles unicamente pertencia.
Julgado e condenado, ele ficou alguns anos encarcerado no Presidio Central e saiu antes pelo bom comportamento que tinha. Não houve um único fim de semana que Soninha, com os filhos, deixou de fazer a sagrada visita ao presídio. Levava bolo de chocolate e o carinho dos filhos. E o ódio do Eugênio, pouco a pouco, foi se transformando em perdão.
Porto Alegre, natal de 1985. Enquanto os militares apagavam a luz de Brasília, Eugênio, Soninha e os filhos decoravam o pinheiro com outras luzinhas lá no casarão da Independência.



A VIÚVA DO TAVARES...

Naquela noite, no Cabaninha, após termos ido ao velório de um grande amigo, não poderíamos deixar de discutir a singular história de vida que teve o finado. O Tavares, grande amante das mesas daquele bar da Volta do Guerino, merecia ter uma retrospectiva honrosa para que fosse pra sempre lembrado. O garçom, pra não atrapalhar, já nem perguntava e ia repondo as redondas.
O Tavares era um sujeito que a vida privilegiou e, com louvor, merecia este posto, pois, desde rapazinho, andou sempre por linhas retas. Trabalhava, por pura necessidade, desde que se conheceu como gente e, por isto, por falta de tempo, para o estudo foi um pouco relapso. Casou aos quarenta e poucos anos e queria, assim como os pais, ter uma numerosa família. E a Regina por quatro vezes trouxe lindas crianças pra casa.
Tavares, com um tino comercial muito forte, acabou por ser bem sucedido e amealhou, com muito suor, ter uma boa quantidade de lojas de roupas na zona norte de Porto Alegre. Dividia com a Regina, sua fiel parceira na luta, o comando dos negócios, sendo que ele cuidava da parte comercial e ela da financeira, ou, de um jeito mais claro, ele de barriga no balcão e ela de cabeça nos números. E assim se entendiam maravilhosamente e já andavam, aí pelos anos 90, com quinze lojinhas abotoadas nos seus vinte anos de casamento.
Tudo corria bem no reino do Tavares até o dia em que apareceu uma candidata pedindo um emprego pra ele. A garota, com dezoito anos feitinhos, mas com cara de muito menos, trajava um vestidinho tão colado e curtinho que só Deus sabe como ela conseguira entrar nele. E pediu uma vaga na empresa assim como quem pede um pirulito pro tio, bem bobinha e faceira. Tavares arqueou as sobrancelhas e perguntou o que ela sabia fazer. Ela, ali de pé na sua frente, com as lindas pernas encostadas no tampo da mesa, respondeu displicentemente que fazia de tudo um pouquinho. Pra ela o Tavares não disse, mas só de olhar, a admissão já estava aprovada, aliás, sem hipocrisia, como é comum em qualquer recrutamento de empresa. No entanto, ele precisava valorizar o momento, e mandou com que a Carolina sentasse. 
A pretensa entrevista, depois que a Carolina sentou, até poderia ser dispensada, pois a menina deu uma cruzada de pernas que nem mesmo a Sharon Stone tinha capacidade de dar. Porém o Tavares, para cumprir o expediente, entregou-lhe uma prancheta e uma ficha para preencher e, é claro, ficou ali olhando feito um cachorro que vê carne em vitrine de açougue. Enquanto aquela promissora empregada escrevia, o Tavares viajava na maionese…
É bom que se diga, antes de qualquer comentário maldoso, que o Tavares nunca foi um sujeito de andar por ai de sacanagens com outras mulheres. Primeiro por ser um cara fiel e segundo por não ter uma aparência que chamasse a atenção do sexo oposto. Ë interessante dizer, até para não idolatrar os caras fiéis, que muitos homens o são pela simples ausência da chance e, de fato, a teoria tem procedência, pois o intocável Tavares pressentiu que ali, frente a frente àquela inocente serpente, a sua hora chegou.
O Tavares, do alto de sua importância, comunicou, após “ler” a fichinha, que a Carolina tinha sido aprovada. E disse mais ainda, que se ela fosse uma funcionária aplicada, teria um grande futuro na empresa. Carolina, em resposta àquela promessa velada, disse que o Tavares não se arrependeria e emocionada falou que o Tavares “estava sendo o paizinho que ela não teve”.
Bom, meu amigo, aí, depois de ouvir algo assim tão sublime, dito por um pitéuzinho daqueles, é de se perguntar se existiria algum homem na terra que resistisse ao desejo de adotar aquela menina.
Porém, aquela admissão da Carolzinha deflagrou uma gigantesca guerra entre o casal. Primeiro, porque o Tavares se meteu nos “Recursos Humanos” que era coisa que a Regina cuidava e, segundo, porque a candidata, na opinião da Regina, não possuía o perfil, nem moral e nem profissional, para trabalhar na empresa. Com a crise instaurada, ela exigiu que o próprio Tavares rescindisse sumariamente o contrato da moça, tipo assim “quem errou que arrume”.
No entanto, para o espanto geral dos funcionários habituados com o poder da Regina, o Tavares, já tomado pelo demônio, não abriu mão daquilo que fez e disse com todas as letras que a Carolzinha ficava e ponto final. Ferida mortalmente no seu orgulho de sócia e esposa, Regina, intempestivamente, sem medir conseqüências, decretou um clássico “ou eu ou ela”, o que deixou o Tavares perplexo. Era um momento por demais simbólico, algo como D. Pedro às margens do Ipiranga, em que um homem se vê obrigado a decidir entre fazer o que sempre fazia ou fazer o que nunca fez. Em fração de segundos, Tavares pensou até na expectativa de vida dos brasileiros, em média de 72 anos, e calculou rapidamente que ele tinha de vida, menos de dez. E isto, ironicamente, foi o fator determinante para que o Tavares virasse o jogo do avesso, pois, sem titubeios, bateu o martelo na frente de todos decidindo que a Carolzinha ficava.
A partir daí todo o contexto virou um verdadeiro “whisk and bowl” envolvendo justiça e advogados e tudo o mais o que se imagina na divisão litigiosa de um patrimônio.
Intervalo para Utilidade Pública:
Esta separação do Tavares e da Regina evidencia um fato, às vezes, despercebido pela maioria, o qual seja o de que muitos casais, casados há muito tempo, estão somente esperando um grave motivo para mandar o casamento pros quintos do inferno, mas, estrategicamente, há que ser algo bem relevante, pois, hipocritamente, a decisão deve partir de ambos e num “racha” que não tenha retorno. Quando a oportunidade aparece, os dois, marido e mulher tornam-se ironicamente cúmplices da própria separação, num plano que estava há tempos escamoteado por ambos.
Então, se você já está cheio desta vida em parceria e não agüenta mais a sua cara-metade, é muito, mas muito mesmo provável que sua mulher também te queira ver pelas costas.
Como diz o velho Tim Maia, “me dê motivo pra ir embora…”
Bom, desconsiderando os embates jurídicos por demais conhecidos, o importante é registrar que tudo acabou entre eles e que a Regina ficou com metade de tudo, inclusive, é claro, metade da quantidade de lojas. No resumo, ela com as lojas dela e o Tavares com as lojas dele. Então, fim de conversa e passemos ao principal.
O Tavares, livre e desimpedido, sabia que a Carolzinha estava predestinada pra ele e, além do mais, era óbvio que ela estava querendo ter uma vida mais confortável. Ele, que nada tinha de otário, consciente das intenções descaradas da Carolzinha, queria mais era aproveitar o prazer que ora surgia pelo tempo que desse. E, é claro, sabia que havia muitas diferenças entre eles, notadamente a de idades, mas até isso, no mundo de hoje, a ciência ameniza. Arquitetou ele um plano geral, antes de se lançar à aventura, envolvendo dieta alimentar, aulas de academia, corridas noturnas e sessões de ioga. Para ajudar, passou a tomar Viagra e e a injetar botox.
Na empresa, a menina estagiava nas vendas, sob a tutela profissional do Tavares que a cuidava como quem cuida de uma delicada plantinha. E ela, quando o via, se derretia como se fosse manteiga e mostrava, sem vergonha nenhuma, que estava ali que nem bola na marca do pênalti, pronta para ser batida.
Verdade seja dita, a Carolzinha, que parecia ser avoada, demonstrou ser competente em suas ações. Além de assumir publicamente o romance, mereceu, dois anos depois, ser promovida como sócia na empresa, exigência essa feita ao Tavares que a aceitou prontamente. O Tavares, contrário a ouvir os conselhos dos filhos e amigos, estava enfeitiçado pela Carol. Até, muitas vezes, tinha lampejos da realidade, mas os mesmos desapareciam na cama, pois a menina fazia gato e sapato entre os lençóis e aí, não há homem, naquela fase, que resista ao apelo do sexo.
Carolzinha oferecia com toda a paciência, por noites inteiras, um repertório que ruborizava até aqueles do Kama Sutra. E o Tavares, sabedor de que quanto maior a oferta maior a graça   e preocupado com o futuro da moça, oficializou, em cerimônia discreta, o casamento em cartório.
Um ano e meio depois, lá, naquela tarde de inverno no campo sagrado, numa cena burlesca, foi até comovente ver a Carolzinha, de véu e vestido preto, jogar uma rosa enquanto o caixão do Tavares descia. Uma singela gotinha de lágrima fazia o mesmo trajeto no doce olhar da elegante viúva.

A MENINA DA BICICLETA

Se há uma fonte inesgotável de histórias será aquela em que se contam as passagens das nossas infâncias. A que vocês vão ler agora foi contada pelo Sergio, um velho guerreiro, numa mesa do Bom Ami, o saudoso bar dos altos da Salgado Filho em Porto Alegre. Acompanhe, pelas suas próprias palavras:
A gente já sabia quais eram os sinais que indicavam que a Dicélia estava indo para o mato, tal o alvoroço que a gurizada fazia. Na década de 60, na rua de chão batido na periferia de Porto Alegre, onde a “civilização” não tinha chegado ainda, lá nos altos do Cristal, éramos um monte de pirralhos em crescimento, principalmente se estivéssemos junto daquela moreninha safada, irmã do Donaldo.
A Dicélia tinha, não tenho certeza, mais do que quinze anos, mas para nós é como se ela tivesse 20 e poucos de tanta sacanagem que sabia. Apesar de ter esta idade e ser mais crescida que o resto, estava ela na mesma aula da turma menor. Até nem sei se ela era meio lerda da cabeça, mas assim para a nossa idade nada aparentava e também pouco importava o detalhe. O importante é que ela fazia a alegria da turma, numa fase em que guris como eu andavam embaixo dos porões batendo umas. E diziam os guris que até o irmãozinho menor, o Donaldo, entrava no rolo.
Eu tinha uns treze anos, e como todo guri naquela época, era um perfeito songamonga. Quando via a gurizada, sempre uns três ou quatro, tomarem o rumo do mato de cambuins com a mulatinha Dicélia, sentia um aperto no peito imaginando quando eu teria coragem de fazer o mesmo trajeto e seguir a cadelinha corrida pela ruazinha de areia.
Um dia, jogando bolitas na frente de casa, e sendo eu o dono de considerável quantidade das mesmas, me surpreendi com o “brique” que o Donaldo me oferecia. Em troca de participar das brincadeirinhas com a irmã eu entregaria minha coleção de bolitas, inclusive os “bochões”.  Imediatamente, em silêncio e com os olhos esbugalhados, e sem saber de onde vinha tanta coragem, entreguei o saco com as preciosas. Mas desde aquele exato momento parecia que alguém batia no meu coração, pelo lado de dentro, como se fosse um tambor. Até ar me faltava, mas de nada adiantava, pois meu destino já estava traçado e voltar atrás seria uma imensa vergonha.
Havia muitas coisas em jogo e eu sequer sabia o que consistia a tal brincadeira com a mulatinha fogosa. E eu que sempre tive uma enorme curiosidade de saber o que a Dicélia fazia com aquela turma no mato. E agora era tarde pra perguntar, pois iam dizer que eu estava me cagando de medo. O pior de tudo era a vergonha de não saber nada sobre mulher, de não ter visto nem em revista, pois na época nem tinha, uma guria pelada. Meu Deus, a ansiedade de não saber por onde começar, o que fazer, onde meter minhas mãos e sabe-se lá o que mais que existia quando um cara ficava com uma mulher. E se ela me beijasse na boca e visse que nem isto eu sabia? Jesus, o que a Dicélia ia fazer comigo?
A vontade que eu tinha era mandar com que o Donaldo ficasse com o saco das bolitas sem me oferecer nada em troca, mas isto, infelizmente, não ia ganhar o seu silencio.
Na minha casa, com dois irmãos já adultos e sempre em volta com a mulherada, muitas vezes, por trás das portas, eu ouvia coisas meio escabrosas, tipo “mulher gosta de beijo de língua”. Lá iria eu ter ideia de como a língua iria beijar uma mulher? Ou “botei de quatro, ela arregaçou e eu mandei ver”… Eu ficava pensando: mandei ver o que? Será que havia alguém vendo? Não sei se ouvir complicava mais ainda a minha cabeça, mas a verdade é que a curiosidade era tanta que ficar a espreita de informações talvez fosse um bom negócio naquela fase da vida.
Mas, longe das teorias, chegou um fim de tarde na vila que a Dicélia apareceu de repente, andando de bicicleta, sem mais nem menos sozinha, na frente da minha casa.  Para mim que estava, na hora errada, debruçado no portão de madeira, indeciso entre entrar correndo pra casa ou ficar prostrado ali mesmo, foram segundos de grande tensão. Principalmente quando ela me mandou subir na garupa, sem tempo pra dizer não, pra dar uma voltinha. Vermelho e mudo, como se fosse um tomate, embarquei consciente que aquele era o meu dia e já, ao me agarrar na cintura da Dicélia, no balanço da bicicleta, senti arrepios nunca antes sentidos ao contato com as carnes da mulatinha.
Na trilhazinha a caminho dos cambuins, Dicélia descansou a bicicleta e me pegou pela mão para nos embrenharmos um pouco mais no mato, certamente num ponto em que pudesse me pegar sem sobressaltos, lá onde só se ouvia o gorjeio de passarinhos. No meio das macegas, ela mostrou devagarinho, com todo o cuidado, as suas melhores habilidades, pois, malandra, sabia que não poderia assustar a sua presa tão nova e inexperiente.
Fez então que eu passasse as mãos em seus seios e provasse com a boca do seu sabor. Ensinou-me um monte de jeitos de beijar uma mulher, inclusive com a língua. E num momento mais do que esperado, sem calcinha e com as pernas abertas no chão, disse-me “vem, olha e mexe na minha pombinha”. Olhei tão de perto que o cheiro do seu sexo penetrou nas minhas narinas como um indescritível prazer. E me acariciando, me tocando, mandando que eu ficasse quietinho, ela foi me envolvendo. E percebendo a hora adequada, me deitou em meio as suas coxas e, jeitosamente, facilitou a penetração. E eu, naquele súbito toque úmido e quente, acelerei, como um coelho, os meus movimentos, mas ela soube conter a minha pressa, apertando com as mãos o meu corpo. E assim, com a paciência de uma professorinha, demonstrando saborear com prazer o petisco, foi me ensinando, naquele tempo exíguo e escondido, o que sabia. 
Aquela foi uma das melhores noites de sono da minha vida, talvez igual a que dormem todos aqueles que romperam o tabu do medo da virgindade e dos mistérios do sexo.
No outro dia, quando entardecia, lá estava eu, como um veterano, correndo entusiasmado com a turma. Na frente, saltitante, ia a Dicélia nos levando pros cambuins e rumo ao prazer e a felicidade precoce.

A MARIA DA VOLTA...

Seu Dutra, aposentado da saudosa ferroviária rio-grandense e figura lendária dos cabarés do Partenon, entre uns e outros rabos-de-galo, nos contou uma história sublime.
Enquanto o ano de 76 dava os últimos respiros, lá ia a Maria Fumaça serpenteando nos dormentes. O tuc-tuc dos trilhos só era abafado pelos longos apitos que vinham da velha locomotiva. O vento, em meio ao mato, espalhava a esmo a fumaceira da lenha que ardia na caldeira. O cheiro do carvão a remetia às lembranças da infância. Parecia, de tão insólito, entre os cheiros e as lembranças, que nunca se chegaria a lugar nenhum, mesmo pra aqueles que queriam viajar de volta no próprio tempo, como era o caso da Maria passageira.
A paisagem não tinha mais graça e sob a luz da lua cheia, se não eram os extensos pastos, eram as verdes matas que passavam que nem raios nas janelas, ora uma ora outra. Até que, de tempos em tempos, se avistavam tênues luzes na noite adentro e a Maria ia parando em estações perdidas e dela desembarcavam vultos que desapareciam no breu do lugarzinho. O homem mal dormido da estação, cumprindo sua tarefa, batia um sino como que dizendo pra Maria dar nos trilhos. E ela ia, devagarzinho, balançando suas cadeiras e se enfiando para onde os paralelos a levassem. Do fundo do vagão onde Maria se ajeitava pra dormir, a música fanhosa de um radinho ia e vinha nas orelhas da infeliz. 
As pestanas de Maria ora fechavam ora se abriam, tão lerdas quanto aquela viagem de volta, tantos anos depois de 66 quando deu as costas pro portão. Saíra criança sem nada conhecer e voltava mulher conhecendo quase tudo, menos o jeito de ser feliz. Saíra cheia de sonhos e voltava vazia, acabada e sem norte nem leste. Não era assim que pensava o regresso, se é que um dia isso pensou, pois às vezes, na vida, temos certeza que os planos darão certo e a meia volta nunca nos passa pela cabeça. Parece que o passado quando reencontrado, depois de nada obtido, nos mostra que os outros tinham razão. Nunca, sob hipótese alguma, queremos dizer aos amigos de outrora e as gentes de então que a vida nos foi ingrata e só nos deu o fundo do poço como morada.
No entanto, aquela Maria nem desta realidade podia fugir, pois se não voltasse às origens, paradeiro não tinha. Lá, provavelmente quem sabe, ia encontrar sua mãe e os irmãos, pois pai já não tinha. E eles, todos eles, disseram, naquela época de dez anos atrás, pra Maria não ir.  E ela, se fazendo de surda, meteu os trapos na mala, beijou a parentalha e caiu mundo afora. Mas a Maria, que se reconheça a mais bonita de todas, talvez por tal predicado, achava que a grande cidade estava mais ao seu jeito do que a grota onde vivia. Maria queria um futuro, queria o esplendor, Maria não queria acordar com as galinhas nem cortar lenha pra botar no  fogão.
Não teve tempo a Maria nem de pensar, nem de ver e nem de negar, pois o presumido e irremediável aconteceu e, desde o primeiro momento, a monstruosa cidade engoliu a criatura inocente. Maria se viu iludida pelas falsas promessas dos homens e foi se enroscando nas ruelas de concreto da imensa metrópole. De doméstica ao bordel foi um pulo, sem dó nem piedade, violentada no corpo e na alma, se perdeu em meio aos vícios e a violência da vida. Maria, alguns anos depois nesta lida, nem parecia aquela Maria de outrora. Passava muitas noites chorando. Tinha imensa saudade de arrancar laranja do pé e até mesmo de tirar leite das vacas. Nunca mais, de vergonha, deu noticias. Seguiu a sina de tantas outras marias coitadas que começam pensando uma coisa e depois fazem coisa nenhuma.  
Os calendários de mercadinho pendurados na porta do promíscuo quartinho foram se trocando sem que Maria notasse que a sua vida estava acabando. No entanto, Maria um dia descobre que tem companhia, pois dentro de si pulsava um coração de criança.
E a paisagem da sua infância, como se o tempo ali não tivesse corrido, começa a dar sinais aos seus olhos. Maria passa uma água na cara para espantar a bobeira enquanto os primeiros clarões do dia invadem o vagão e a Maria Fumaça vai avisando que chega. E Maria já vê o velho prédio, quase em ruínas, do frigorífico onde o pai trabalhava. E o trem vai parando, parando, parou.
Ali só desce Maria com a mala na mão, uma bolsa no ombro e uma esperança no ventre…

ABAIXO A DITA DURA!

O Ariosto é um simplório sujeito que é mandado pela mulher, como tantos outros maridos são por aí. E isso já faz uns trinta anos. No inicio do casamento até tentou ser o chefe, mas não tinha jeito para uma função tão difícil. Então, com o tempo, se acomodou e deixou que a Leonora, que era ora boa ora uma peste, deitasse ordens na casa. Pouco a pouco a Leonora instituiu atos e medidas, provisórias ou permanentes, determinando o que o Ariosto podia ou não fazer no dia a dia. Por exemplo, toalha molhada encima da cama e cueca suja no meio das limpas, isso não podia. Fazer a barba só no banho, pois na pia deixava sujeira. À noite, deitar sem lavar os pés no tanque era pecado mortal.
Em tudo a mulher metia a colher e até a roupa que o Ariosto botava, passava pelo scanner da Leonora. Isso sim, isso não, assim assado, assim cozido. Até o sexo na casa do Ariosto era só quando a Leonora queria e nas vezes em que ele insistia acabavam dormindo bunda com bunda. Dor de cabeça só dava na dela e na dele esta doença tão conveniente não estava autorizada.
O casal tinha uma filha já adulta, solteira convicta e bem estranha nos hábitos. Tatuada, de cabelo espetado e de piercings, sempre andava com amigas um tanto suspeitas. Leonora e o marido já nem se importavam com as olheiras vermelhas que a filha chegava pelas manhãs. Como entrava e saía sem incomodar e respeitava as regras da casa, Leonora deixava passar as bizarrices da filha.
Nos domingos pela manhã, um contrariado Ariosto, mesmo não acreditando em santo nenhum, era arrastado para ajoelhar na igrejinha do bairro. Mesmo que não soubesse nenhuma oração tinha que fingir que sabia, pois, do contrário, mesmo na casa de Deus, o demônio surgia. E o chato da coisa é que todos os crentes sabiam que o coitado lá estava puxado a cabresto.  E sem que cumprisse a tarefa, Ariosto, naquele dia, não jogaria bocha no clube. Porém, tendo realizado a amarga missão, sobraria ainda ser corneteado pela turma no jogo.  Na bocha, os amigos perguntavam se o Ariosto engolira o Pai Nosso ou rezara a Ave Maria e  ele dava de ombros, como se demonstrasse não estar nem aí pro problema.
O difícil de acreditar neste enredo é que o Ariosto era um chefe durão na empresa em que trabalhava. Lá, no estaleiro, respeito e disciplina exigia ele em primeiro lugar e o pessoal andava pisando em ovos pra não contrariar o sujeito.  Quem o visse de macacão e capacete branco orientando o guindaste no pátio de obras, pensaria que ali estava um daqueles sujeitos duros na queda que mandam em tudo a sua volta.
Entretanto, segundos depois de bater o ponto do fim do dia, os ombros do Ariosto iam arqueando devagarinho até que chegando a casa, o pobre nem tinha mais ombros. Não havia dia em que, abrindo a porta de casa, não esperasse um grito lá da cozinha avisando para tirar os sapatos. E de pantufas entrava o grande chefe do estaleiro como se fosse um mansinho angorá. Nas quartas-feiras à noite, enquanto o seu time jogava, tinha que ele sentar na sala pra ver a novela da Globo e, o pior, tinha que tomar um chazinho que a Leonora todo santo dia fazia. E lá ficava ele, ela e o gato que só vivia dormindo.
Mas tanto foi a história que tal como Vinicius dizia “que seja eterno enquanto dure”, que um dia aconteceu algo insólito. Ocorre que Ariosto era um fumante que ele mesmo se dizia inveterado, talvez para impressionar a quem escutasse. E Leonora, graças a Deus, a isto consentia desde que o Ariosto fosse contido e determinou, para não haver exageros, que o marido fumasse um cigarro por dia, ou melhor, por noite e depois do jantar. Para salvaguardar os interesses ambientais do cheiro do fumo, o usuário, no caso o Ariosto, deveria saciar o seu vicio na área externa da frente de casa. Então, numa noite após o jantar, o sujeito procura o bendito cigarro e, desgraçadamente, não o encontra. E os neurônios do homem se desesperam pela ausência da nicotina. Sair para comprar nem pensar, pois Leonora, àquela hora, pelos estatutos da casa, não permitia.
Ariosto, já afetado por algo que ele julgava ser um delirius, vai ao quarto da filha em busca de salvação. Tanto remexe que acha, só que um daqueles sem filtro, mas seria aquele que o salvaria de agonia tão grande. E foi o Ariosto para o pátio da frente de casa, não sem antes tirar as pantufas, tragando os prazeres inenarráveis daquela fumaça. Porém, desacostumado o homem com a ausência de filtro, cada tragada que dava parecia que lhe arrancava o pulmão de tanta tosse que vinha. E aquele fumo esquisito foi entrando nos neurônios do Ariosto como um curto-circuito na placa, até que sua cabeça regrada entrou em colapso.
Ariosto ficou doidão e escancarou a porta de casa como um chute de fora da área. Não ouviu, ou não quis, quando ela falou pra não esquecer as pantufas. Essas, as pantufas, ele deu dois balõezinhos e emendou pro meio da rua. Com os olhos esbugalhados deu uma braçada no gato que espirrou pro alto que nem pipoca estourada.  Quebrou ainda mais meia dúzia de badulaques que enfeitavam o balcão, sob o pavor da Leonora que se borrava de medo. Subiu na cadeira e gritou a plenos pulmões que “morram os militares” e “abaixo a ditadura”.
Na frente da casa do Ariosto, com tanto barulho, juntou muita gente, alguns até com cartazes pedindo democracia e torturas nunca mais. Ariosto, tal qual um Peron brasileiro, sai à frente da área e é aclamado pela multidão entusiasta.
Ariosto, na mesma noite, toma um porre e toma posse daquela pequena nação, enquanto a filha esquisita faz promessa pra São Longuinho tentando achar o baseado. 

A GRANDE AUSÊNCIA...

Esta história foi contada pelo Seu Argel, velho frequentador dos botecos da Rua da República, ali na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Apreciem.
Por diversas causas que aqui não vem ao caso, viviam os três, o avô, o neto e o cachorro, numa casinha simples de um povoado, ao lado de uma pequena escola. O velho afirmava, com todas as letras, que o vira-lata era de raça. O guri também achava. Os vizinhos faziam troça já que o cachorro, de conhecimento geral, era filhote de uma cadela sarnenta de rua.
À tardinha sentavam os dois, aliás, os três, na frente de casa para assistir ao movimento que não era muito. Ora uma carroça, ora uma bicicleta. Quando um se levantava, por exemplo, para ir ao portão, levantavam os outros dois, fossem quais fossem os dois. Se o velho ia escavar no jardim, juntos iam o cachorro e o guri. Estas coisas serviam para provar o quanto inseparáveis eram. Pra assistir televisão, ficavam empilhados, o cachorro no colo do guri e o guri no colo do avô.
Quando o avô ia ao banco sacar a aposentadoria, na fila, depois dele, estariam sempre o guri e depois o cachorro, apesar dos protestos do funcionário do banco.
Já pensou se um dia um lá não estivesse? Pois aconteceu…
Ficaram sós quando eram dois, e dois não era a conta que eles estavam acostumados. Não conversavam mais, viviam em constante melancolia e saudades. Às vezes vinham no portão, mas não mais sentaram à frente de casa. Caminhavam pela calçada da frente de casa até a esquina milhões de vezes, sem destino.  Meu Deus, quanta falta pode fazer um quando eram três. Como a ausência de um pode esvaziar uma parceria que se diria indesmanchável…
Os dois ficavam enrolando e resmungando em volta de casa, uma hora pra um lado, outra hora pro outro. Até os vizinhos se apiedavam tal a tristeza dos dois. E o relógio sobre a geladeira corria alheio e vagaroso, fazendo desdém da lamúria dos abandonados.
De repente, do lado da casa dos dois, a diretora bate a sineta e dá por encerrado o primeiro dia de aula do ano. A gurizada irrompe para o portão da escola como se fosse uma avalanche infantil.
E correm os dois para o portão e sobram choros e abraços para o guri que chega orgulhoso. Depois de uma longa manhã na escola…