sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A MARIA DA VOLTA...

Seu Dutra, aposentado da saudosa ferroviária rio-grandense e figura lendária dos cabarés do Partenon, entre uns e outros rabos-de-galo, nos contou uma história sublime.
Enquanto o ano de 76 dava os últimos respiros, lá ia a Maria Fumaça serpenteando nos dormentes. O tuc-tuc dos trilhos só era abafado pelos longos apitos que vinham da velha locomotiva. O vento, em meio ao mato, espalhava a esmo a fumaceira da lenha que ardia na caldeira. O cheiro do carvão a remetia às lembranças da infância. Parecia, de tão insólito, entre os cheiros e as lembranças, que nunca se chegaria a lugar nenhum, mesmo pra aqueles que queriam viajar de volta no próprio tempo, como era o caso da Maria passageira.
A paisagem não tinha mais graça e sob a luz da lua cheia, se não eram os extensos pastos, eram as verdes matas que passavam que nem raios nas janelas, ora uma ora outra. Até que, de tempos em tempos, se avistavam tênues luzes na noite adentro e a Maria ia parando em estações perdidas e dela desembarcavam vultos que desapareciam no breu do lugarzinho. O homem mal dormido da estação, cumprindo sua tarefa, batia um sino como que dizendo pra Maria dar nos trilhos. E ela ia, devagarzinho, balançando suas cadeiras e se enfiando para onde os paralelos a levassem. Do fundo do vagão onde Maria se ajeitava pra dormir, a música fanhosa de um radinho ia e vinha nas orelhas da infeliz. 
As pestanas de Maria ora fechavam ora se abriam, tão lerdas quanto aquela viagem de volta, tantos anos depois de 66 quando deu as costas pro portão. Saíra criança sem nada conhecer e voltava mulher conhecendo quase tudo, menos o jeito de ser feliz. Saíra cheia de sonhos e voltava vazia, acabada e sem norte nem leste. Não era assim que pensava o regresso, se é que um dia isso pensou, pois às vezes, na vida, temos certeza que os planos darão certo e a meia volta nunca nos passa pela cabeça. Parece que o passado quando reencontrado, depois de nada obtido, nos mostra que os outros tinham razão. Nunca, sob hipótese alguma, queremos dizer aos amigos de outrora e as gentes de então que a vida nos foi ingrata e só nos deu o fundo do poço como morada.
No entanto, aquela Maria nem desta realidade podia fugir, pois se não voltasse às origens, paradeiro não tinha. Lá, provavelmente quem sabe, ia encontrar sua mãe e os irmãos, pois pai já não tinha. E eles, todos eles, disseram, naquela época de dez anos atrás, pra Maria não ir.  E ela, se fazendo de surda, meteu os trapos na mala, beijou a parentalha e caiu mundo afora. Mas a Maria, que se reconheça a mais bonita de todas, talvez por tal predicado, achava que a grande cidade estava mais ao seu jeito do que a grota onde vivia. Maria queria um futuro, queria o esplendor, Maria não queria acordar com as galinhas nem cortar lenha pra botar no  fogão.
Não teve tempo a Maria nem de pensar, nem de ver e nem de negar, pois o presumido e irremediável aconteceu e, desde o primeiro momento, a monstruosa cidade engoliu a criatura inocente. Maria se viu iludida pelas falsas promessas dos homens e foi se enroscando nas ruelas de concreto da imensa metrópole. De doméstica ao bordel foi um pulo, sem dó nem piedade, violentada no corpo e na alma, se perdeu em meio aos vícios e a violência da vida. Maria, alguns anos depois nesta lida, nem parecia aquela Maria de outrora. Passava muitas noites chorando. Tinha imensa saudade de arrancar laranja do pé e até mesmo de tirar leite das vacas. Nunca mais, de vergonha, deu noticias. Seguiu a sina de tantas outras marias coitadas que começam pensando uma coisa e depois fazem coisa nenhuma.  
Os calendários de mercadinho pendurados na porta do promíscuo quartinho foram se trocando sem que Maria notasse que a sua vida estava acabando. No entanto, Maria um dia descobre que tem companhia, pois dentro de si pulsava um coração de criança.
E a paisagem da sua infância, como se o tempo ali não tivesse corrido, começa a dar sinais aos seus olhos. Maria passa uma água na cara para espantar a bobeira enquanto os primeiros clarões do dia invadem o vagão e a Maria Fumaça vai avisando que chega. E Maria já vê o velho prédio, quase em ruínas, do frigorífico onde o pai trabalhava. E o trem vai parando, parando, parou.
Ali só desce Maria com a mala na mão, uma bolsa no ombro e uma esperança no ventre…

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