sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

ALL YOU NEED IS LOVE...

Porto Alegre, 1980, últimas horas do ano.  Eugênio, sozinho e perdido, estava sentado e algemado num banco de um corredor, esperando o advogado chegar. Lá fora começavam a espocar os primeiros foguetes do réveillon e ali dentro as poucas pessoas se davam um abraço que outro com os desejos de um ano novo feliz. Para ele, tanto o ano como a vida tinham acabado. Eugênio estava desatinado e sem referências, pois não era um marginal e tampouco um bandido.  Sempre fora um rapaz comportado e de educação refinada, tendo casado com a namorada primeira e não conhecido as malandragens da vida. De mulher, principalmente, só conhecia a sua. Tinha sido o tal tipo, como tantos milhões parecidos, que só fazia o trajeto casa e trabalho e não se desviava, nem moral e nem geograficamente, deste percurso.
Dez anos antes em 70, enquanto o mundo estava virando do avesso e a selva do Vietnã enterrava soldados, Soninha, a tal namorada primeira, era órfã e morava com a tia num pequeno apartamento na Cristovão Colombo, perto da Brahma.
Ela tinha casado com mais experiência, fruto de sua convivência com os hippies e a teoria em que tudo era possível desde que feito com amor. Dentro disto, com a paz, amor e um fininho de erva, ela amadureceu precocemente e até mesmo já havia tido um caso de amor não resolvido com um sujeito bem mais velho que ela. Ele, ao contrário, só vivendo para o estudo, só sabia da vida o que estava escrito nos livros. Vivia somente com o pai, pois a mãe tinha morrido já fazia alguns anos. 
Em frente à Reitoria, lá na Faculdade de Filosofia, “embalada” com Dexamil, Soninha cantarolava “All You Need is Love” e o Eugênio, que fazia Farmácia, nem tinha ideia do que os Beatles diziam. Só achava aquela garota de riponga floreada muito engraçada. E eles, com ele meio sem graça e entre as muitas graças dela, foram se grudando, assim como o pão com a manteiga.
Eugênio, com a evolução da amizade, levou a espevitada Soninha para o pai conhecer. O pai, quase um cinquentão, a aguardava ansioso para um julgamento, mas logo de entrada a descontraída menina quebrou todo o gelo.  Naquele sisudo casarão da Independência, a alegria tinha acabado de invadir as alas e o pai do Eugênio encantou-se por ela e nunca mais, os dois, lhe deixaram sair. Ela mandou que abrissem as janelas e que deixassem as cortinas esvoaçarem as naftalinas com o vento. Assim, como a natureza que ali aflorava, virou a filha do velho, virou a irmã e mulher do Eugênio, virou, enfim, a luz que faltava.
Mesmo com a barriga de sete meses, Soninha, entusiasmada, empunhava cartazes contra a repressão e até mesmo se encarapitava nas árvores da Praça da Alfandega quando o Choque chegava. E o Eugênio, fiel ao seu lado, na Praça da Alfândega, exigia que os milicos entregassem o poder.
Veio antes a filha e depois o menino. E o relógio dos anos foi girando e girando. Na Redenção, Eugênio e Soninha, nos domingos de primavera, passeavam de bicicletas com os filhos. No verão em Cidreira, na casinha de praia, toda a família era só alegria.
Eugênio, se é que tinha noção, jamais pensara em ser tão feliz desse jeito. Nunca imaginara a expansão da família e nem sequer tinha tido o maravilhoso sonho de ser pai e marido. E, no entanto, se é que existia a perfeição nesta vida, Eugênio a tinha inteiramente obtido. E, às vezes, tinha até certo medo, pois, como qualquer ser humano, sabia que tudo, seja concreto ou abstrato, em algum momento pela lei do destino, tem que acabar.
E acabou naquela tarde em que a década estava virando.
O pessoal que trabalhava na farmácia foi liberado bem mais cedo do que o previsto e o exultante Eugênio logo correu para casa para antecipar os festejos. Entra correndo e chamando a Soninha, mas ela, naquele momento se contorcendo entre gemidos, não lhe escuta, pois o seu ouvido só consegue entender os murmúrios de amor ditos pelo pai do rapaz. E assim, Eugênio, na intimidade daquela nudez imoral, os encontra no quarto.
Os olhos esbugalhados de Eugenio percorreram o quarto e acharam a tesoura na penteadeira. Com ela, com a visão deturpada, desfere muitas e muitas estocadas no pai e só pára quando cai exaurido sobre o assoalho. Soninha, desesperada, pede perdão, diz que merece morrer e lhe suplica que a mate. Eugênio, num choro convulsivo, diz que infelizmente ela deve viver, pois os filhos dela dependerão. E amargamente complementa:
- E eu já nem sei se são meus…
Completamente arrasado, ele exige as verdades e ela, sem mais nada a perder, e até por piedade, lhe conta que o pai dele era o caso mal resolvido de amor que ela teve. E mais, que durante os dez anos vivera com o pai durante o dia e com ele, o Eugênio, durante a noite. E termina afirmando, com todas as letras e lágrimas, que amava profundamente os dois e que somente a eles unicamente pertencia.
Julgado e condenado, ele ficou alguns anos encarcerado no Presidio Central e saiu antes pelo bom comportamento que tinha. Não houve um único fim de semana que Soninha, com os filhos, deixou de fazer a sagrada visita ao presídio. Levava bolo de chocolate e o carinho dos filhos. E o ódio do Eugênio, pouco a pouco, foi se transformando em perdão.
Porto Alegre, natal de 1985. Enquanto os militares apagavam a luz de Brasília, Eugênio, Soninha e os filhos decoravam o pinheiro com outras luzinhas lá no casarão da Independência.



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