sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

ABAIXO A DITA DURA!

O Ariosto é um simplório sujeito que é mandado pela mulher, como tantos outros maridos são por aí. E isso já faz uns trinta anos. No inicio do casamento até tentou ser o chefe, mas não tinha jeito para uma função tão difícil. Então, com o tempo, se acomodou e deixou que a Leonora, que era ora boa ora uma peste, deitasse ordens na casa. Pouco a pouco a Leonora instituiu atos e medidas, provisórias ou permanentes, determinando o que o Ariosto podia ou não fazer no dia a dia. Por exemplo, toalha molhada encima da cama e cueca suja no meio das limpas, isso não podia. Fazer a barba só no banho, pois na pia deixava sujeira. À noite, deitar sem lavar os pés no tanque era pecado mortal.
Em tudo a mulher metia a colher e até a roupa que o Ariosto botava, passava pelo scanner da Leonora. Isso sim, isso não, assim assado, assim cozido. Até o sexo na casa do Ariosto era só quando a Leonora queria e nas vezes em que ele insistia acabavam dormindo bunda com bunda. Dor de cabeça só dava na dela e na dele esta doença tão conveniente não estava autorizada.
O casal tinha uma filha já adulta, solteira convicta e bem estranha nos hábitos. Tatuada, de cabelo espetado e de piercings, sempre andava com amigas um tanto suspeitas. Leonora e o marido já nem se importavam com as olheiras vermelhas que a filha chegava pelas manhãs. Como entrava e saía sem incomodar e respeitava as regras da casa, Leonora deixava passar as bizarrices da filha.
Nos domingos pela manhã, um contrariado Ariosto, mesmo não acreditando em santo nenhum, era arrastado para ajoelhar na igrejinha do bairro. Mesmo que não soubesse nenhuma oração tinha que fingir que sabia, pois, do contrário, mesmo na casa de Deus, o demônio surgia. E o chato da coisa é que todos os crentes sabiam que o coitado lá estava puxado a cabresto.  E sem que cumprisse a tarefa, Ariosto, naquele dia, não jogaria bocha no clube. Porém, tendo realizado a amarga missão, sobraria ainda ser corneteado pela turma no jogo.  Na bocha, os amigos perguntavam se o Ariosto engolira o Pai Nosso ou rezara a Ave Maria e  ele dava de ombros, como se demonstrasse não estar nem aí pro problema.
O difícil de acreditar neste enredo é que o Ariosto era um chefe durão na empresa em que trabalhava. Lá, no estaleiro, respeito e disciplina exigia ele em primeiro lugar e o pessoal andava pisando em ovos pra não contrariar o sujeito.  Quem o visse de macacão e capacete branco orientando o guindaste no pátio de obras, pensaria que ali estava um daqueles sujeitos duros na queda que mandam em tudo a sua volta.
Entretanto, segundos depois de bater o ponto do fim do dia, os ombros do Ariosto iam arqueando devagarinho até que chegando a casa, o pobre nem tinha mais ombros. Não havia dia em que, abrindo a porta de casa, não esperasse um grito lá da cozinha avisando para tirar os sapatos. E de pantufas entrava o grande chefe do estaleiro como se fosse um mansinho angorá. Nas quartas-feiras à noite, enquanto o seu time jogava, tinha que ele sentar na sala pra ver a novela da Globo e, o pior, tinha que tomar um chazinho que a Leonora todo santo dia fazia. E lá ficava ele, ela e o gato que só vivia dormindo.
Mas tanto foi a história que tal como Vinicius dizia “que seja eterno enquanto dure”, que um dia aconteceu algo insólito. Ocorre que Ariosto era um fumante que ele mesmo se dizia inveterado, talvez para impressionar a quem escutasse. E Leonora, graças a Deus, a isto consentia desde que o Ariosto fosse contido e determinou, para não haver exageros, que o marido fumasse um cigarro por dia, ou melhor, por noite e depois do jantar. Para salvaguardar os interesses ambientais do cheiro do fumo, o usuário, no caso o Ariosto, deveria saciar o seu vicio na área externa da frente de casa. Então, numa noite após o jantar, o sujeito procura o bendito cigarro e, desgraçadamente, não o encontra. E os neurônios do homem se desesperam pela ausência da nicotina. Sair para comprar nem pensar, pois Leonora, àquela hora, pelos estatutos da casa, não permitia.
Ariosto, já afetado por algo que ele julgava ser um delirius, vai ao quarto da filha em busca de salvação. Tanto remexe que acha, só que um daqueles sem filtro, mas seria aquele que o salvaria de agonia tão grande. E foi o Ariosto para o pátio da frente de casa, não sem antes tirar as pantufas, tragando os prazeres inenarráveis daquela fumaça. Porém, desacostumado o homem com a ausência de filtro, cada tragada que dava parecia que lhe arrancava o pulmão de tanta tosse que vinha. E aquele fumo esquisito foi entrando nos neurônios do Ariosto como um curto-circuito na placa, até que sua cabeça regrada entrou em colapso.
Ariosto ficou doidão e escancarou a porta de casa como um chute de fora da área. Não ouviu, ou não quis, quando ela falou pra não esquecer as pantufas. Essas, as pantufas, ele deu dois balõezinhos e emendou pro meio da rua. Com os olhos esbugalhados deu uma braçada no gato que espirrou pro alto que nem pipoca estourada.  Quebrou ainda mais meia dúzia de badulaques que enfeitavam o balcão, sob o pavor da Leonora que se borrava de medo. Subiu na cadeira e gritou a plenos pulmões que “morram os militares” e “abaixo a ditadura”.
Na frente da casa do Ariosto, com tanto barulho, juntou muita gente, alguns até com cartazes pedindo democracia e torturas nunca mais. Ariosto, tal qual um Peron brasileiro, sai à frente da área e é aclamado pela multidão entusiasta.
Ariosto, na mesma noite, toma um porre e toma posse daquela pequena nação, enquanto a filha esquisita faz promessa pra São Longuinho tentando achar o baseado. 

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